‘Entrevista com o Demônio’: Como a Inteligência artificial mudou o filme
- Luis Feitosa
- 13 de nov. de 2024
- 5 min de leitura
As pessoas realmente odeiam a inteligência artificial ou elas foram ensinadas a repetir esse discurso?

Arte de divulgação do filme "Entrevista com o Demônio"
O recém-adicionado filme do catálogo da Netflix, Late Night with the Devil, tem sido alvo de críticas negativas desde seu lançamento. Isso não está acontecendo porque o filme é ruim (afinal, ele é excelente), mas por conta de três imagens que, somadas, aparecem na tela por menos de 15 segundos.
Para contextualizar, o longa adota o genêro Found Footage (quando a narrativa é contada através de gravações reais ou ficcionais que, até então, estavam "perdidas") para contar a história de Jack Delroy, um apresentador de Talk Show dos anos 70. Após uma crise de audiência e o falecimento de sua esposa, o protagonista e seu produtor decidem fazer um especial de Halloween, com um médium, uma parapsicóloga (estudiosa do sobrenatural), um cético e uma garota que acredita ter um demônio em seu corpo.
O filme explora o constante conflito entre os que dizem ter poderes especiais e o cético, que tenta a todo momento provar que aqueles eventos mágicos não passam de performances de ilusionismo. O longa desenvolve uma crítica ao desespero por audiência, ao sensacionalismo e as práticas da mídia nos anos 70, que são usadas até hoje.
Esse texto não é uma crítica cinematográfica, mas recomendo o filme, ele é excelente!
Toda a estrutrura artística passa ao telespectador a sensação de que o longa realmente foi gravado nos anos 70, desde o figurino até a maneira com que os personagens gesticulam. Como o filme simula que estamos assistindo a fitas de um programa perdido, as pausas para comerciais do Talk Show também fazem parte do roteiro, e é aí que o escândalo começa.
Esses intervalos mostram imagens estáticas que marcam a ida e a volta do programa de Delroy, o Night Owl, para o ar. Essas artes, com temática de Halloween, ficam pouco mais de 4 segundos na tela. Em uma resenha do LetterBoxd, o usuário Based Gizmo publicou uma review comentando do uso de Interligência Artificial em três dessas imagens:
"Tem IA em quase tudo, desde os cortes até as mensagens de "voltamos já" da rede. Por conta disso, não consigo aproveitar as atuações incríveis e o final inteligente. Na verdade, é até ofensivo ver aquela mensagem genérica aparecendo repetidamente, como se os criadores do filme não se importassem e quisessem deixar claro que você vai ter que aceitar uma IA óbvia em uma produção que se passa nos anos 70. Não deixe que isso se torne o começo de aceitar esse tipo de coisa no seu entretenimento".

Uma dessas imagens: os dedos das mãos em uma posição não anatômica, um erro clássico da I.A Generativa
O debate em questão
A maior questão que essa review no LetterBoxd me gerou: COMO CARALHOS ESSE CARA PERCEBEU ISSO EM QUATRO SEGUNDOS?
E é exatamente nessa minha indagação que esse debate surge, e assim como tudo que acontece na Internet, não há meio-termo, você tem duas opções: Ser seguidor do Elon Musk e acreditar que a I.A vai mudar o mundo para melhor, ou rejeitar profundamente qualquer coisa associada a essas duas letras.
De um lado temos os liberais, que dessa vez englobam até os meio-campistas, eles utilizam o discurso do tempo, afinal as imagens ficam tão pouco tempo na tela que são imperceptíveis para a maioria (o Based Gizmo não faz parte desse grupo) e consequentemente inofensivas.
Do outro temos os conservadores, que também utilizam o mesmo discurso, afinal esses poucos segundos podem abrir uma porta para filmes utilizarem cada vez mais a ferramenta, e ao mesmo tempo, argumentam que por uma parte tão pequena do filme seria mais justo contratar artistas.
Essa posição também é impulsionada pelas recentes greves de atores e roteiristas, que reivindicavam clareza contratual sobre os limites éticos e trabalhistas do uso da Inteligência Artificial no cinema hollywoodiano.
A questão chegou ao Mainstream e a Variety entrevistou os diretores do longa, os irmãos Cameron e Colin Cairnes: "Em parceria com nossa incrível equipe de imagem e design de produção, todos os quais trabalharam incansavelmente para dar a este filme a estética dos anos 70 que sempre imaginamos, experimentamos IA em três imagens fixas que editamos ainda mais e que, por fim, aparecem como intertítulos muito breves no filme [...]"
Assim que aquela análise foi publicada um movimento de Review Bombing, no qual os usuários avaliam uma obra negativamente como protesto, começou. "Isso é apenas o começo da IA em nossa mídia. Se este filme for bem-sucedido, a IA se tornará cada vez mais predominante na 'arte' contemporânea." disse um usuário no Twitter (X).
Na prática, esse ativismo não saiu das redes sociais. Investigando os principais sites de avaliação e crítica de cinema (Rotten Tomatoes, IMDB, Metacritic e o próprio LetterBoxd) é possível encontrar algumas reclamações, mas a grande maioria rasga elogios, que estão estampados na sua maior avaliação de 92/100 na média crítica do Rotten.

Avaliação do longa no agregador Rotten Tomatoes
Frequentemente, Eu e o Arthur, os criadores desse site, discutimos o uso da I.A, e quase sempre discordamos. Ele com uma visão mais artística e eu com uma abordagem pragmática. Mas a coisa que sempre concordamos é como a inteligência artificial generativa subverte os artistas. Todas essas imagens e vídeos, desde o Will Smith comendo macarrão até logomarcas simples, são criadas a partir da gigantesca base de dados hospedada na Internet. O estilo, os detalhes, a forma como as cores são usadas, tudo.
E isso questiona a relação de direitos autorais de uma obra. Se tudo que eu publicar na internet pode ser usado como base para uma ferramenta, o que realmente é meu? Por outro lado, a arte moderna também faz isso, você pode chamar de referência ou de cópia, mas existe uma semelhança, mesmo que pequena, em criar uma obra baseada em outro artista e o Chat GPT gerar uma imagem com um banco de dados, e é exatamente nisso que ele é falho. Os humanos copiam, mas eles também criam. É nativo da nossa espécie. Uma máquina nunca vai conseguir fazer isso da mesma maneira, ela não ama, não odeia e, acima de tudo, não consegue expressar isso em uma imagem.
Assim, eu vejo a I.A mais como uma ferramenta que como um inimigo. Eu não faço parte do clube dos seguidores do Elon Musk, mas constantemente me vejo no site da OpenAI conversando com um software e pedindo, educadamente, para ele criar tabelas, compilar dados e até corrigir a pontuação em textos. Isso faz de mim menos jornalista? Não. Usar três imagens criadas artificialmente faz Late Night with the Devil um filme ruim? Depende de quem vê.
De qualquer maneira, ainda é muito cedo. O "teste" dos irmãos Cairnes pode ser visto como um pioneirismo ou uma afronta, e essa dicotomia é definida na mente de cada um. A I.A no cinema, games, na arte e em tudo que envolve cultura é inevitável, nos resta decidir como lidaremos com isso.
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